Por Tárik César
Estabelecendo a Discussão
Este artigo tenta fomentar um debate construtivo sobre o papel do conhecimento de programação na profissão jurídica. Para isso, antes de qualquer outra coisa, é necessário estabelecer os axiomas implícitos dessa discussão. Afinal de contas, é uma discussão polêmica, que suscita opiniões fortes. O melhor é ser claro sobre fatores implícitos que raramente são mencionados e comumente motivos de confusão.
O primeiro destes fatores é a temporalidade e estabilidade do mercado jurídico. Minha argumentação sobre a necessidade ou não da habilidade de programar está condicionada ao tempo presente e também para alguns anos para o futuro, um período em torno de dez a quinze anos. Neste período de tempo, embora o mercado jurídico seja fortemente impactado pelos desenvolvimentos tecnológicos, não suponho uma mudança radical na natureza do próprio trabalho jurídico neste período de tempo. Novas funções e requisitos serão incorporados ao trabalho jurídico, e o papel de Cientistas da Computação e tecnologias aumentará, mas a profissão em si mesma permanecerá em seus aspectos fundamentais. Este pressuposto é raramente explicitado. É possível que este pressuposto esteja equivocado e melhorias em ferramentas automatizadas tornem a habilidade de programar ainda menos necessária, por exemplo. Ou também a digitalização do mundo atinja um ponto tão massivo que a habilidade de programar se torne condição sine qua non para trabalhar em qualquer coisa minimamente complexa.
De fato minha aposta está um pouco mais para o segundo cenário que o primeiro, mas somente para o médio e longo prazo, de cinquenta a cem anos. Coisas como o projeto Computational Antitrust da Universidade de Stanford podem se tornar a regra. A frase coding is eating the world também pode ser descrita como legal informatics is going to eat law. Essa é uma aposta minha e eu não sou um oráculo para adivinhar o longo prazo. Nem este texto é sobre isso. Deixo esta opinião mais para informar meu viés. Este texto é apenas um pequeno prognóstico sobre a profissão jurídica nos próximos quinze anos, onde pressuponho muitas mudanças, mas não de natureza radical. Já em trinta a quarenta anos tudo aqui escrito pode ter envelhecido bem mal, muito bem ou qualquer coisa entre os polos. Esteja avisado!
A segunda variável que dá base à discussão é a primeira palavra apresentada. “Devem”. O locus da discussão é se há necessidade preeminente dos profissionais do Direito aprenderem a programar ou não para realizar suas atividades típicas num mundo digitalizado. Não estou falando da utilidade. A utilidade é clara, cristalina. É útil para boa parte dos profissionais de quaisquer áreas aprenderem a programar, seja para treinar habilidades lógicas, se familiarizar com ferramentas de IA, ter vantagem competitiva no mercado de trabalho. praticar atos de cidadania digital, automatizar tarefas simples ou até para desenvolver produtos inovadores. Existem diversas outras razões para aprender a programar. Minha sugestão, tendo tempo, faça o download do Python 3.X, abra um curso básico no Youtube ou no Kaggle, ou ainda em alguma plataforma de sua escolha e brinque um pouquinho com sintaxe fazendo prints de “hello world” e comandos “if-else” e “for”. Se achar interessante, aprofunde! E se não sabe o que as últimas palavras significam, que tal dar uma olhadinha? É uma habilidade útil de se ter num mundo digitalizado. Útil, eu digo, mas não é o que estará em discussão, a discussão é sobre necessidade.
Por fim, a última coisa a se ter em mente é o objeto da discussão. Afinal de contas o que significa saber programar. Aqui já deixo a devida vênia a Jason Morris. Embora eu sempre tenha tido o feeling da situação, foi graças ao modo de discussão dele neste artigo que a situação ficou clara para mim. Dê uma olhada no Medium dele, tem coisas legais para quem curte Direito e Novas Tecnologias.
O ponto que ele apresenta é a raiz de muitas discussões mail feitas sobre o tema. Resumindo a discussão de Morris, há uma clara diferença de significado do que é saber programar entre o que o pessoal que não programa e o pessoal que programa. Não programadores veem a atividade de programar como um ofício, uma habilidade de construção de algo, quase como algo físico. Próximo a um marceneiro ou artesão. No caso o produto “manual” construído não é um móvel, mas um programa, um software, uma aplicação, um objeto “palpável” em última análise. Por outro lado, o pessoal que programa tende a ter uma visão distinta do que é programar. Não é uma habilidade motora de produção de algo, mas uma habilidade de uso linguagem usada para se comunicar ou expressar regras de maneira eficaz para se comunicar com a máquina. Claro que você pode usá-la para produção de software e análogos, mas isso é parte do aprendizado da língua. A pergunta “Devem Advogados Aprender a Programar" para pessoas que programam está mais próxima da pergunta “devem advogados aprender Inglês” ou “devem advogados aprender Mandarim" do que se devem aprender a fazer guarda roupas, cadeiras ou softwares.
Essas são as variáveis implícitas da discussão. Estabelecidas, vamos à argumentação de porque um advogado não deveria aprender a programar.
Porque Um Advogado Não Precisa Aprender a Programar
Dado algumas de minhas opiniões anteriores, talvez você tenha tido um sentimento de estranhamento ao título desta seção. Afinal de contas devo aprender a programar ou não? Acalme-se que a resposta está no final. O que digo é que existem excelentes razões para um advogado não aprender a programar que não podem ser ignoradas.
Bom, a primeira coisa a ser dita é a mais simples: Aprender a programar é difícil. Cursos introdutórios apresentam normalmente a sintaxe, como o que comentei anteriormente, como fazer “hello worlds” e “loops” usando comandos “while” e “for”.
Programar de fato é algo bem mais complicado do que aprender a sintaxe. Envolve desenvolvimento de experiência com constante prática, o que pode envolver horas de leitura de documentação e constante procura no Stackoverflow para encontrar soluções. Como qualquer outro aprendizado de uma nova língua, demanda foco e persistência. É um investimento de alto custo em tempo e mesmo recursos que muitas vezes não será possível ou terá um retorno sob investimento razoável. Estamos numa época em que o mercado demanda competências e habilidades para além do conhecimento da letra da lei e especialidades. Programar pode ser uma delas, mas há outras como conhecimento de Gestão de Projetos ou Contabilidade que podem ser tão ou mais importantes dependendo de sua carreira.
Um segundo fator é o caráter de hype e bolha da coisa que aparece em certos círculos. Se você já entrou nessa discussão antes, você já deve ter ouvido de alguém “A tecnologia é o futuro!” “Não perca o Trem da História!” “O Direito se concentra no passado!”. Essas frases são repetidas à exaustão, como mantras a serem reforçados religiosamente. Escutamos reiteradamente que o Direito está condenado à danação dos livros cobertos de poeira e a tecnologia é a única salvação. Sinceramente a única resposta aceitável a esse discurso é We Get it Boomer! Muito disso vem de pessoal que não lida de fato com aspectos práticos ou dificuldades de implementação de ferramentas de T.I. e, ou busca lucrar com a hype ou ainda simplesmente não sabe o que está falando. Obviamente ninguém, sobretudo eu, nega que a tecnologia da informação e suas associadas têm tido impactos em todos os campos da vida humana, e não será diferente com o Direito. Muito do impacto real é diferente do espetáculo do fim do mundo esperado por alguns. Mesmo em relação às mudanças mais radicais (algumas das quais concordo), o escopo temporal das tendências é mais lento do que o apresentado.
Por sua vez, a maioria dos argumentos contrários que são mobilizados em discussões ficam ao redor da visão apresentada no início sobre programar como uma atividade de produção de algo. Embora eu já tenha argumentado que essa visão é equivocada, há nela pontos fundamentalmente válidos.
Se programar é o ato de produzir softwares ou aplicativos, operadores jurídicos em geral não precisam aprender a programar. Novamente pode até ser útil para alterar e customizar programas que eles utilizam, mas de forma alguma é uma necessidade para o trabalho jurídico. Operadores do Direito fazem as rodas do sistema jurídico funcionarem, utilizando-se de operações jurídicas típicas como petições, contrarrazões etc. Eles podem e usualmente manuseiam softwares para realizar tais tarefas, mas de modo algum precisam produzir essas ferramentas eles mesmos. Afinal de contas, a especialização é a mãe da eficiência. Os advogados e outros operadores jurídicos devem, sem dúvida, aprender a trabalhar com programadores, mas não ser programadores eles mesmos dos softwares que irão usar. Advogados continuaram pelo futuro próximo apresentando petições e não linhas de código.
Em última análise, um advogado não precisa aprender a programar se houver outras habilidades e conhecimentos mais relevantes a serem investidos em sua carreira, seguir a hype cool do momento ou para entregar linhas de código que não tem lugar.
Porque Advogados Devem Aprender A Programar e em Níveis Diferentes
Se a seção anterior lhe diz por que um advogado não deve aprender a programar, Como dito, há boas razões para advogados não aprenderem programação. Porém há razões para um advogado aprender a programar.
Vamos pensar um exemplo. Se você é um advogado especializado em Direito Internacional e lida primariamente com julgados da corte internacional relativos a conflitos entre Estados, é altamente provável que você não precise aprender a programar para realizar esse trabalho. Pode ser útil e melhorar o seu serviço, mas não é requisito. Por outro lado, se você for lidar com questões como a forma que um estado soberano deve lidar com hackers internacionais, além de um conhecimento razoável em segurança da informação e outros aspectos de T.I. um conhecimento introdutório se torna no mínimo interessante. Por sua vez, se você não vai simplesmente lidar com julgados, mas de fato ajudar na criação de dispositivos e padrões relativos à temática de hackers, talvez o conhecimento pode se tornar um requisito.
Aqui, o ponto chave para toda a discussão. A contínua implementação de ferramentas computadorizadas que fazem intermediação dos diversos aspectos da vida humana continuará acelerando, mesmo no curto prazo. Considerando somente a reação à pandemia, vimos a rápida aplicação e espetacular explosão do uso de conferências por vídeo pelo Zoom, trabalho remoto, espaços de trabalho digitalizados, assinaturas digitalizadas e até mesmo Cortes Online. Uma infraestrutura de TI é base para qualquer negócio agora. Tendências menos explosivas terão ainda mais impacto no médio prazo que as mais visíveis de curto prazo. Há muita hype, como disse antes, mas também há razões para crer em forte impulso à TI. Novas ferramentas e novas capacidades geram, claro, novos bens jurídicos a serem protegidos, novas relações jurídicas a serem estabelecidas ou mudanças profundas nas atuais, além de demanda de normatização para uso responsável de novas tecnologias.
Desse modo, saber se programar se tornará um requisito para sua carreira jurídica no futuro próximo é relacionado a algumas variáveis. A primeira é o quão próximo de novas tecnologias se trabalha ou se espera trabalhar, seja como objeto ou como ferramenta de trabalho. A segunda é o quanto a relação jurídica a qual é alvo do seu trabalho será intermediada pela tecnologia. A interação dessas duas variáveis segmenta a necessidade de aprendizado em programação em três partes.
O primeiro segmento é relacionado com setores não profundamente afetados pelas novas tecnologias de informação. Advogados e outros operadores jurídicos cujas tarefas são essencialmente relacionadas a essa área não tem necessidade de aprender a programar e as argumentações da seção anterior do texto importam mais que qualquer outra coisa. Boa parte das atividades jurídicas continuarão tendo sua existência deste modo dado que boa parte das relações jurídicas permaneceram mesmo que intermediadas pela computação, não muito diferentes em natureza. Um contrato desenhado no Word tem relativamente poucas diferenças fundamentais para um contrato escrito a caneta em papel, não é necessário que eu saiba como o Word funciona ou saber criar macros nele para escrever um contrato. Este segmento continuará sendo a maioria da profissão por volta de 2030 e além, mas o número de tarefas desta natureza estará diminuindo paulatinamente. Desse modo, se eu acredito que boa parte das relações jurídicas a qual trabalho não serão afetadas em sua natureza ou as ferramentas que usarei demandarão apenas conhecimento de usuário típico, não preciso me preocupar em aprender a programar, correto? Infelizmente a resposta é aquela mais maldita de todas: “É complicado”. Sim, é muito provável que você trabalhe numa área que não será afetada em sua natureza pela digitalização, mas não há como prever com tanta acurácia se a sua área em particular é uma destas áreas. A digitalização influenciará todas as áreas, algumas de modo mais superficial, outras em caráter mais profundo. Por exemplo, a mudança do desenho de contratos da caneta e papel para editor de texto em computador como o Word não afeta a natureza jurídica muito menos a demanda que você saiba muita coisa de Word. Agora pensar em Smart Contracts feitos numa plataforma blockchain é um animal diferente de um contrato típico seja em Word ou papel e demanda pelo menos alguma compreensão da plataforma em si mesma para ser trabalhado. Algumas áreas serão digitalizadas como criar contratos em Word, outras como Smart Contracts e saber qual dos dois tipos é a sua é muito mais complicado do que parece.
O princípio de precaução passa a agir com força aqui. Se há possibilidade das relações jurídicas as quais se trabalha terem uma expectativa razoável de serem afetadas em sua natureza pela computação, então mesmo que o advogado não precise saber programação no momento, talvez deva aprender pelo menos um básico just in case.
Além desses casos há um segundo segmento de atividades que demanda um advogado mais capaz de lidar com códigos, tendo uma compreensão razoável de programação, sobretudo lógica dela e alguma sintaxe de uma linguagem. Exatamente porque já lida diretamente com novas ferramentas ou lida com objetos de relações jurídicas computadorizadas. Lidar com contratos inteligentes demanda algum conhecimento da plataforma usada, o que implica muitas vezes entender a lógica de como ela foi programada. Lidar diretamente com os aspectos da tecnologia normalmente também tem a mesma demanda. Por sua vez o trabalho com leis de proteção de dados, especialmente em empresas cujo core business é tecnologia, por exemplo, pode demandar um conhecimento dos fluxos de dados, de linguagem de banco de dados SQL entre outros.
Até mesmo pensando em divisão de tarefas, a criação das ferramentas de TI para o Direito podem ser feitas por engenheiros de software, mas tanto a criação e constante manutenção destas demandam necessariamente aconselhamento jurídico. Trabalhar com o pessoal de TI gera o requisito de entender o trabalho que estes irão realizar.
Porém nem sempre o básico será o suficiente. Já há tarefas que demandam um advogado com conhecimento robusto dos mais diversos aspectos de computação, incluindo não somente programação propriamente dita. Pensando, por exemplo, no setor de Proteção de Dados. A maioria dos advogados desta área está e provavelmente tendem ao grupo anterior. Porém alguns serão demandados para mais. É impossível fazer uma auditoria eficaz no uso de dados pessoais de uma empresa de tecnologia que usa um pipeline de dados onde a coleta de dados é feita num crawler feito no VS Code em linguagem Python com processamento híbrido no Apache Spark e Scheduling no Apache Airflow para alimentar uma rede neural de aprendizado profundo sem entender não bem não só programação, mas desenvolvimentos de ETL, Data Warehouse e Data Lakes, computação em nuvem entre outras tecnologias. De fato eu francamente espere que um número razoável de advogados não tem a mínima ideia do que foi descrito acima. Este tipo de trabalho tende a crescer forte na próxima década em empresas de tecnologia primariamente e mesmo fora delas e demanda um profissional interdisciplinar capaz de ser bom nas duas áreas.
A própria falta de mão de obra na TI pode ser um grande fator. O fato de desenvolvedores serem escassos ainda não só para o mercado jurídico torna atrativo um desenvolvedor que entenda a área jurídica e consiga entregar produtos. A criação de produtos inovadores relacionados a sistemas preditivos de litigação ou desenvolvimento de arquitetura de contratos inteligentes podem e em alguns casos devem ser feitos por um profissional híbrido.
Em resposta à pergunta proposta no próprio título, devem os advogados aprender a programar, a resposta é, sim um básico para a maioria devido ao princípio de precaução, um básico reforçado se há forte intermediação tecnológica ou demandada pelas ferramentas usadas no mercado a qual esteja inserido e muito se você estiver mirando um trabalho em setores avançados de tecnologia. Volte ao início do texto, baixe o Python e brinque um pouco, pode ser fundamental para o seu futuro.
Gostei muito do texto. Direto e coerente. Eu sinceramente concordo com as respostas aos axiomas propostos! Já compartilhei o texto.
Parabéns pelo artigo. Sou formado em Direito e estou estudando programação. Seu artigo realmente trouxe mais luz. Obrigado.
Excelente artigo!