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Dados pessoais sensĂ­veis e inferĂȘncias

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  • 18 de mai. de 2019
  • 9 min de leitura

Atualizado: 19 de mai. de 2019

Autor: Pedro Bastos Lobo Martins



O “Caso Target” jĂĄ Ă© conhecido por muitos e citado em quase todo texto que trata de Big Data e proteção de dados. Para os que nĂŁo conhecem, em resumo, o pai de uma adolescente entrou em uma das lojas Target, uma empresa de varejo norte-americana, e ficou furioso ao descobrir que a companhia estava oferecendo cupons de desconto em produtos de bebĂȘ para sua filha. A reviravolta se dĂĄ quando, depois de um tempo, o pai liga para o gerente da loja e pede desculpas porque havia descoberto que sua filha de fato estava grĂĄvida. Esse caso foi relatado no ano de 2012, quando o conhecimento das possibilidades de uso de “Big Data” nĂŁo era tĂŁo disseminado quanto hoje.


Embora jĂĄ seja um caso bastante conhecido, ele continua sendo Ăștil para introduzir a temĂĄtica de proteção de dados. Um ano antes, a Target havia desenvolvido um modelo que era capaz de atribuir uma nota a consumidores relativas Ă  probabilidade daquela consumidora estar grĂĄvida a partir de seu histĂłrico de compras. Com esse modelo era possĂ­vel inferir nĂŁo sĂł a probabilidade de gravidez, mas, com uma boa precisĂŁo, quando o bebĂȘ iria nascer. Isso permitia que a empresa enviasse cupons de desconto em estĂĄgios especĂ­ficos da gravidez.


Esse Ă© um Ăłtimo exemplo de como a partir do processamento de dados que Ă  primeira vista parecem triviais Ă© possĂ­vel se chegar a informaçÔes sensĂ­veis e relevantes sobre alguĂ©m atravĂ©s de inferĂȘncias.



Anos depois do “Caso Target”, a proteção de dados ganhou muito mais notoriedade e relevĂąncia, mas ainda estamos dando os primeiros passos em direção a uma regulação efetiva. Nesse texto, iremos analisar como a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18) cria uma categoria especial de dados pessoais — dados pessoais sensĂ­veis — e qual sua relação com as inferĂȘncias. Ao final, buscaremos elucidar algumas controvĂ©rsias ligadas a essa categorização e fazer uma crĂ­tica a uma das escolhas adotada pela lei, apresentando uma alternativa que acreditamos ser mais efetiva.


A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz diversos direitos aos titulares e deveres aos controladores relacionados ao tratamento de dados pessoais. No entanto, nĂŁo Ă© claro se esses direitos e obrigaçÔes se estendem para abranger as inferĂȘncias.


Por sua prĂłpria natureza, as inferĂȘncias podem dizer respeito a informaçÔes que o titular nĂŁo sabe que sĂŁo de conhecimento do controlador e, em alguns casos, que ele nĂŁo sabe sobre si mesmo. Justamente pelo controle individual desses dados ser ainda mais difĂ­cil (ou atĂ© mesmo impossĂ­vel), Ă© preciso de uma atenção especial quanto a estrutura de regulamentação prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados. O grande perigo de nĂŁo se regular satisfatoriamente as informaçÔes sensĂ­veis obtidas atravĂ©s de inferĂȘncias Ă©, de um lado, inviabilizar o tratamento de dados e, do outro, abrir margem para uma perpetuação subjacente de desigualdades.


A LGPD traz em seu art. 5Âș, II o conceito de dado pessoal sensĂ­vel como:

dado pessoal sobre origem racial ou Ă©tnica, convicção religiosa, opiniĂŁo polĂ­tica, filiação a sindicato ou a organização de carĂĄter religioso, filosĂłfico ou polĂ­tico, dado referente Ă  saĂșde ou Ă  vida sexual, dado genĂ©tico ou biomĂ©trico, quando vinculado a uma pessoa natural;

A seguir, em seu art. 11, estabelece as bases legais para o tratamento de dados sensĂ­veis. Pode-se dizer que o consentimento do titular, fornecido de “forma especĂ­fica e destacada, para finalidades especĂ­ficas” Ă© o principal fundamento para o tratamento nesse caso, ao contrĂĄrio das hipĂłteses adotadas para o tratamento de dados pessoais nĂŁo sensĂ­veis. Isso porque a base legal do legĂ­timo interesse nĂŁo figura entre as hipĂłteses legais de tratamento de dados sensĂ­veis, assim como a de proteção ao crĂ©dito tambĂ©m estĂĄ excluĂ­da. As demais bases legais previstas pelo art. 11, II, dizem respeito majoritariamente ao cumprimento de obrigaçÔes legais e realização de pesquisa cientĂ­fica. Voltaremos a esse ponto ao final do texto, apontando alguns problemas na escolha feita pela lei.


À primeira vista, embora existam essas limitaçÔes, pode parecer que a categoria de dados pessoais sensĂ­veis Ă© muito especĂ­fica e, portanto, nĂŁo apresenta grande relevĂąncia para a maioria dos controladores. Entretanto, na matĂ©ria de proteção de dados as relaçÔes sĂŁo sempre dinĂąmicas e contextuais. Isso significa que Ă© preciso fazer uma anĂĄlise concreta de determinada atividade de tratamento para se concluir se um dado pessoal serĂĄ considerado sensĂ­vel ou nĂŁo.


Em um breve exemplo: ao informar seu nome para reserva de um restaurante, provavelmente esse dado nĂŁo serĂĄ considerado sensĂ­vel. Por outro lado, se um imigrante, ao contratar um plano de saĂșde, preenche um formulĂĄrio com seu nome, que facilmente identifica sua origem Ă©tnica e isso afeta o preço do serviço oferecido, seu nome pode ser considerado um dado sensĂ­vel.


HĂĄ inclusive fundamento legal, conforme previsto pelo art. 11 §1Âș, para que as mesmas obrigaçÔes sejam aplicĂĄveis ao “tratamento de dados pessoais que revele dados pessoais sensĂ­veis e que possa causar dano ao titular”. AlĂ©m do reconhecimento pela lei da necessidade de se analisar contextualmente a atividade de tratamento, esse dispositivo dĂĄ reconhecimento legal Ă s inferĂȘncias traçadas atravĂ©s do processamento que podem revelar informaçÔes sensĂ­veis.


Mas afinal, o que de fato sĂŁo inferĂȘncias e qual sua relevĂąncia para a regulação da proteção de dados pessoais sensĂ­veis?


Por que proteger dados sensĂ­veis?


A proteção especial conferida aos dados considerados sensíveis pela LGPD tem como fundamento a proteção da privacidade e a observùncia dos princípios da finalidade e não discriminação.


Dados que revelem origem Ă©tnica, orientação sexual, religiosa, dados referentes Ă  saĂșde, entre outros, sĂŁo merecedores de uma maior proteção nĂŁo por seu carĂĄter intrinsecamente privado, uma vez que o exercĂ­cio da privacidade nĂŁo Ă© determinado pelo conteĂșdo da informação, mas sim pelo contexto informacional como um todo, abrangendo a informação, a finalidade para qual estĂĄ sendo usada e como foi obtida (NUSSENBAUM, 2004). 


Exemplificando: A filiação partidĂĄria de um candidato Ă  presidĂȘncia da repĂșblica nĂŁo Ă© uma informação privada em um debate televisivo. Entretanto, essa mesma informação merece a salvaguarda jurĂ­dica da privacidade quando seu titular solicitar um emprĂ©stimo para fins particulares.


Portanto, pode-se concluir que a proteção especial a dados sensíveis advém do fato de a lei atribuir a eles uma presunção de potencial discriminatório que cause dano ao titular, levando em conta também a finalidade daquele tratamento.



O que sĂŁo inferĂȘncias e qual sua relevĂąncia para a proteção de dados?


A pesquisadora Sandra Wachter propĂ”e a seguinte conceituação para inferĂȘncias, no Ăąmbito da proteção de dados pessoais:

InformaçÔes relacionadas a uma pessoa natural identificada ou identificåvel, criadas através de dedução ou raciocínio lógico [reasoning] ao invés da mera observação ou fornecimento pelo titular. (WACHTER, 2018, p. 14)


Em termos prĂĄticos: ao se cadastrar em uma rede social o sujeito informa ao menos seu nome e email. Esses sĂŁo dados pessoais fornecidos pelo titular. Esse sujeito usa essa rede social atravĂ©s de um aplicativo em um iPhone. O modelo do celular do titular Ă© um dado pessoal obtido atravĂ©s da observação. Se, a partir desse dado, a rede social determinar que aquele titular possui uma condição financeira abastada, caracteriza-se uma inferĂȘncia.


Esse conceito ganha relevùncia à medida que a atividade de tratamentos de dados pessoais se torna presente em cada vez mais åreas da atividade comercial e empresas conseguem, através disso, prever e manipular o comportamento de consumidores.


NĂŁo Ă© preciso de muito para que a partir do processamento de dados se obtenha informaçÔes sensĂ­veis sobre titulares. Como demonstrado por um estudo, a partir de uma Ășnica variĂĄvel — likes no Facebook — os pesquisadores foram capazes de inferir com 93% de acurĂĄcia o gĂȘnero dos participantes (parĂąmetros considerados foram homem e mulher). A taxa de acerto foi ainda mais alta para a raça, 95% (os parĂąmetros considerados foram caucasiano e afro-americano). Orientação sexual, religiosa e polĂ­tica tambĂ©m foram inferidas com altas taxas de acerto (KOSINSKI et. al., 2013). Outros estudos tambĂ©m encontram correlaçÔes inusitadas, como a de que pessoas inteligentes gostam de “Curly Fries” no Facebook.


A partir dessas inferĂȘncias o titular pode ser avaliado e ter conteĂșdo especĂ­fico direcionado para ele, sendo assim elementos que constituem a identidade digital daquele sujeito. Com isso fica claro que, para serem efetivas na garantia da autodeterminação informativa e no livre desenvolvimento da personalidade, as regras impostas para o tratamento de dados pessoais sensĂ­veis nĂŁo podem se limitar aos dados cedidos diretamente pelo titular (voluntariamente ou nĂŁo). Desta forma, o artigo 11 §1Âș da LGPD Ă© de enorme relevĂąncia para a matĂ©ria, estendendo o conceito de dado pessoal sensĂ­vel e, portanto, as aplicaçÔes das regras do art. 11.


É possĂ­vel que nesse momento tenha soado uma alerta no leitor: Isso significa que em virtude do aumento e difusĂŁo da capacidade de inferir informaçÔes sobre titulares, todo e qualquer dado pessoal poderĂĄ ser categorizado como um dado sensĂ­vel?



A parte final do texto serå dividida em dois pontos. Primeiro, iremos buscar uma resposta para essa pergunta e traçar parùmetros para identificar quando um tratamento de dados poderå ser considerado tratamento de dado pessoal sensível. A segunda parte consistirå em uma anålise crítica da proteção legal adotada pela lei para dados pessoais sensíveis e uma possível alternativa regulatória.



Conforme dito anteriormente, a LGPD trouxe restriçÔes para o tratamento de dados sensĂ­veis, sendo a mais significativa delas a ausĂȘncia do legĂ­timo interesse como base legal. A extensĂŁo disso para as inferĂȘncias pode gerar uma insegurança jurĂ­dica grande para os controladores. No entanto, com uma interpretação sistemĂĄtica Ă© possĂ­vel buscar uma resposta que dĂȘ efetividade ao objetivo da lei, evitando a inviabilização do tratamento e ao mesmo tempo dando proteção aos titulares.


O art. 11 §1Âș faz a ressalva de que para sua incidĂȘncia em tratamentos que revelem dados e inferĂȘncias sensĂ­veis Ă© preciso que essa atividade possa causar dano ao titular. Dano aqui deve ser entendido de maneira ampla, ou seja, qualquer inviabilização de direito, indisponibilização de serviço ou violação de interesse do titular jĂĄ Ă© considerado um dano. No entanto, nem todo tratamento que revele dado sensĂ­vel irĂĄ causar isso.


É preciso considerar o tratamento de dados efetivamente realizado pelo controlador de acordo com a atividade que realiza, e nĂŁo a possibilidade abstrata de se inferir informaçÔes. Nesse mesmo sentido, o Considerando 51 da Regulamento Geral Europeu sobre a Proteção de Dados (GDPR) destaca que:

O tratamento de fotografias não deverå ser considerado sistematicamente um tratamento de categorias especiais de dados pessoais, uma vez que são apenas abrangidas pela definição de dados biométricos quando forem processadas por meios técnicos específicos que permitam a identificação inequívoca ou a autenticação de uma pessoa singular.

Portanto, a possibilidade de se inferir dados sensĂ­veis nĂŁo enseja automaticamente a mesma proteção. É preciso demonstrar que com aquele tratamento especĂ­fico sĂŁo descobertas e utilizadas informaçÔes sensĂ­veis para atividades como categorizar, direcionar conteĂșdo ou avaliar o titular. Nesse caso seria necessĂĄrio, de acordo com a legislação, o consentimento do titular para essa finalidade e fornecido de “forma especĂ­fica e destacada”. 


Mas serĂĄ que o consentimento do titular Ă© uma boa maneira de resguardĂĄ-lo?


No inĂ­cio do texto, ao analisar o artigo 11 da LGDP e as bases legais para o tratamento de dados sensĂ­veis foi apontado que o consentimento pode ser considerada a principal base legal para essa categoria de dados. Ainda, ao longo da anĂĄlise foi defendido que inferĂȘncias que revelem dados pessoais sensĂ­veis sĂŁo o principal desafio regulatĂłrio e merecem atenção especial pelo potencial discriminatĂłrio que apresentam. Essas duas afirmaçÔes revelam um retrocesso da lei.


Embora a princĂ­pio pareça contraintuitivo, confiar no consentimento como ferramenta de proteção do titular leva a uma menor proteção legal (SCHERMER et. al. 2014, LAZARO e MÉTAYER, 2015). Devido a enorme assimetria informacional entre controlador e titular (principalmente se tratando de inferĂȘncias), no momento do consentimento o titular nĂŁo tem como saber quais informaçÔes serĂŁo obtidas sobre ele, de forma que nenhuma escolha significativa e proteção efetiva seriam garantidas.


Uma alternativa Ă  confiar ao indivĂ­duo toda a responsabilidade pelo controle e coleta de dados sensĂ­veis relativos a ele seria uma regulação que impusesse obrigaçÔes aos controladores para que adotem medidas para evitar que inferĂȘncias e dados sensĂ­veis sejam usados para discriminaçÔes injustificadas.


Justamente por isso o legĂ­timo interesse seria uma melhor base legal para esse tratamento, uma vez que seria possĂ­vel impor ao controlador que para realizar tratamento de dados que revele dados e inferĂȘncias sensĂ­veis seria necessĂĄrio constar no relatĂłrio de impacto os objetivos e consequĂȘncias desse tratamento. Fazer uma anĂĄlise de como funciona os relatĂłrios de impacto Ă  proteção dados pessoais foge do escopo do texto, mas destaca-se a sua previsĂŁo nos arts. 5Âș, XVII, art. 10 §3Âș e art. 38 da LGPD.


Nesse mesmo sentido, Sandra Wachter propĂ”e um “direito a inferĂȘncias razoĂĄveis”. A autora defende que o controlador deve justificar, antes do tratamento: (i) quais dados estĂŁo sendo usados para traçar inferĂȘncias e porque sĂŁo relevantes para descobrir aquela informação. (ii) porque essas inferĂȘncias sĂŁo relevantes para o propĂłsito da atividade de tratamento de dados que o controlador realiza. (iii) se os dados e mĂ©todos utilizados sĂŁo validos e estatisticamente precisos. (WACHTER, 2018, p. 80)


Essas soluçÔes garantiriam efetivamente um maior controle de dados pessoais, uma vez que tira todo o peso da decisĂŁo do sujeito, dĂĄ mais transparĂȘncia ao titular de quais dados e quais inferĂȘncias sobre ele estĂŁo sendo coletadas e permite uma fiscalização pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados atravĂ©s da exigĂȘncia de relatĂłrios de impacto, por exemplo. 


ReferĂȘncias:


WACHTER, Sandra; MITTELSTADT, Brent. A Right to Reasonable Inferences: Re-Thinking Data Protection Law in the Age of Big Data and AI. Columbia Business Law Review, a sair. DisponĂ­vel em: <https://ssrn.com/abstract=3248829>. Acesso em: 19 nov. 2018.


DURANTE, Massimo. The Online Construction of Personal Identity Through Trust and Privacy. Information, v. 2, n. 4, p. 594–620, 11 out. 2011.


Nissenbaum, Helen. Privacy as contextual integrity Washington Law Review, v. 79, n. 1, p. 119–157, 2004.


KOSINSKI, M.; STILLWELL, D.; GRAEPEL, T. Private Traits and Attributes Are Predictable from Digital Records of Human Behavior. Proceedings of the National Academy of Sciences, 2013, v. 110, n. 15, p. 5802–5805.


SCHERMER, Bart W.; CUSTERS, Bart; VAN DER HOF, Simone. The Crisis of Consent: How Stronger Legal Protection May Lead to Weaker Consent in Data Protection. Ethics and Information Technology, v. 16. n. 2. p. 171–182. Junho, 2014


LAZARO, Christophe; MÉTAYER, Daniel Le. Control Over Personal Data: True Remedy or Fairy Tale? SCRIPTed — Journal of Law, Technology & Society. Edinburgh: University of Edinburgh School of Law. v. 12, n. 01, p. 03–34, Junho, 2015.

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