Gustavo Schainberg S. Babo
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A conexão e o shareting
A Internet evolui em uma velocidade que torna difícil acompanhar as consequências de seu crescimento e suas implicações em nossas vidas. Estar “desconectado”, além de ser um verdadeiro luxo, pode tornar-se um empecilho ao acesso à direitos fundamentais, chamados na doutrina constitucional como terceira e até quarta geração, como o direito a comunicação e a publicidade processual de processos eletrônicos.
Com isso, este texto pretende refletir o fenômeno contemporâneo da exposição de pessoas juridicamente incapazes, em especial de bebês e crianças, em ambiente digital por seus próprios pais.
O termo usado para descrever o uso em excesso de redes sociais pelos pais para compartilhar mídias de seus filhos é shareting. Mas afinal, o que é isso? Quais são as consequências? O que as novas leis de proteção de dados entendem sobre?
A prática do shareting é uma realidade no Brasil e no mundo. Um relatório recente do projeto Preparando Para Um Futuro Digital da London School of Economics (LSE) afirma que 75% dos pais que usam a Internet mensalmente, compartilham fotos ou vídeos de seus filhos online e que são mais propensos a fazer isso com crianças mais novas. Uma outra pesquisa da empresa de cibersegurança AVG aponta que mais de 80% das crianças estão presentes no ambiente online aos 2 anos de idade, com casos em que os pais compartilham quase 1500 imagens de seus filhos antes do quinto aniversário. No Brasil, são milhares de casos que se enquadram na prática de shareting, com algumas contas em redes sociais criadas exclusivamente para isso.
Esse compartilhamento exagerado não tem limites, são fotos da hora de dormir à hora de acordar, do traje para a festa, do aniversário, da aula de natação, da roupa usada no natal, da ida ao colégio, das refeições, das férias e de tudo mais que for possível, inclusive fotos antes do nascimento da própria criança, com imagens de ultrassom. Essa documentação digital inconsciente pode ser percebida aos montes em redes sociais, inclusive, com alcance grande o suficiente para sua monetização.
Não somente fotos, mas também informações postadas, como falas, conversas, acontecimentos e até o geotagging da localização das crianças podem trazer consequências no curto, médio e longo prazo. Na maioria das vezes, esse comportamento é aparentemente inocente, mas é notório ressaltar que pode ser difícil se livrar por completo de todos os vestígios deixados na rede. Os pais têm que se lembrar que seus filhos crescerão e certas informações poderão assombrá-los no futuro.
Consequências do shareting
Os registros públicos, exagerados e detalhados de crianças podem ser causadores de problemas no futuro, pois, uma vez na Internet, é difícil apagar essa memória, afinal as limitações técnicas são um empecilho à plena execução do direito ao esquecimento.
Publicações antigas que são desenterradas podem causar danos na esfera moral, emocional e até mesmo física.
Ademais, o shareting também traz consequências negativas no presente, visto que as informações publicadas podem atrair pessoas perigosas, mal-intencionadas e negativas ao seu desenvolvimento sócio emocional. Além de problemas para a própria socialização da criança, com a ocorrência de bullying, por parte de seus colegas ou ‘ataques’ de outras pessoas em redes sociais, dos chamados haters.
Todavia, existem sim razões positivas para o shareting, principalmente quando realizado para unir as famílias geograficamente dispersas, permitindo conselhos parentais e o apoio emocional no contato de parentes e amigos. Portanto, esses razoáveis benefícios devem ser equilibrados com o respeito e com o consentimento. Todavia, infelizmente, essa balança está muito desigual e na maioria dos casos as consequências negativas serão sentidas pelas crianças no presente e no futuro, sem contar com aquelas que têm suas imagens exploradas como atividade lucrativa.
Perspectiva legislativa
A lei europeia de proteção de dados, a GDPR, mudará a idade de consentimento para fins de dados, mas ainda há muitas incertezas em relação a esse tema, principalmente ao relaciona-lo com o shareting. A Comissão de Informação do Reino Unido saiu na frente dizendo que não haverá uma idade fixa para que um jovem decida sobre conceder ou não os seus dados pessoais. Contudo, o governo inglês propôs que a idade será fixada em 13 anos, que é a idade que a maioria das redes sociais consideram como mínima. Todavia, várias contas em redes, como o Instagram, expõem a vida de menores de 13 anos, sendo que muitas delas possuem até mais de 1.000.000 de seguidores, além do shareting que os pais fazem em suas contas pessoais.
Por conseguinte, a GDPR considerou que os países podem escolher essa idade mínima entre 13 e 16 anos. Todavia, como há informações defasadas, ainda não está claro se o shareting é ou não um problema para essas leis mais específicas, mas é certo que para a GDPR e para a LGPD, lei brasileira semelhante, um indivíduo ou uma organização deve obter consentimento explícito ou ter alguma outra base legítima para compartilhar os dados pessoais de um outro indivíduo. Na prática, isso significa que os pais devem perguntar se a criança concorda antes de compartilhar as informações online, visto que podemos considerar que elas têm uma expectativa razoável de privacidade em relação a algumas das informações que os pais estão divulgando.
Certamente, podemos considerar que o compartilhamento de fotos e informações com alguns amigos e familiares é normal, mas compartilhar em ampla escala pública é bem diferente e expor crianças online com a pretensão de anunciar uma marca de fraldas, por exemplo, necessita fundamentalmente de consentimento. Mas será que essas crianças realmente entendem o que é o consentimento?
Ademais, sabemos que a solicitação de consentimento nesse caso é confusa e em hipótese alguma funcionará na prática. Portanto, é necessário pensarmos em uma solução melhor para o shareting. Uma sugestão interessante seria educar pais e filhos sobre essa publicação excessiva na Internet e as possíveis consequências disso. Dessa forma, podemos pensar na criação de uma “cultura de shareting”.
Essa é uma situação bem irônica porque muitos desses pais defendem a ideia de ensinar aos seus filhos como navegar nas redes seguramente, sem divulgar informações de sua vida para estranhos que podem ser perigosos devido às intenções desconhecidas ou para não se exporem socialmente sem necessidade. Todavia, mesmo essa sendo uma antiga e importante discussão, parece impotente quando os próprios pais estimulam essa situação.
Crianças têm direito à privacidade. No entanto, o direito dos pais de controlar a educação de seus filhos e o à liberdade de expressão podem sobrepujar esse interesse. Ademais, podemos considerar algumas dessas redes sociais uma “terrinha sem lei” em que tudo isso pode acontecer, inclusive contas de menores de 13 anos com milhões de seguidores e a superexposição de crianças que obviamente não entendem as consequências disso e não sabem o que é consentimento. É uma pena que essa “terrinha” tenha tantas implicações negativas para pessoas tão novas que sequer entendem o que significa Internet.
Referências: