Grupo de Estudos em Direito, Tecnologia e Inovação – DTI
Data da Reunião: 26.03.2019
Relatores: Sidney Rocha e Gustavo Vieira
A privacidade é um valor social fundamental. É um conceito em desarranjo, não se pode precisa-la através de um único conceito, sendo composta por vários outros como controle de informação, proteção da reputação, liberdade de vigilância, dentre outros.
O conceito de Privacidade
Alan Westin tenta em sua obra “Privacy and Freedom” (1967) demonstrar as origens naturais da ideia de privacidade. Ele demonstra que virtualmente toda espécie animal busca períodos de reclusão individual ou de intimidade em pequenos grupos. Os animais buscam revindicar um espaço privado para promover o bem estar individual ou do grupo, de forma que certos aspectos da privacidade não são de concepção exclusiva do ser humano.
Do mesmo modo, não é só a necessidade natural por privacidade que é compartilhada entre humanos e outros animais. Há uma necessidade de estímulos sociais durante a vida, através de contato com outros e compartilhamento de sensações (não só para fins de reprodução). A luta para atingir um balanço entre privacidade e participação social constitui um processo básico da vida animal.
Westin também demonstra que, apesar do entendimento que prevaleceu pro certo tempo entre antropólogos, a ideia de privacidade não é necessariamente moderna. Sociedades primitivas não tem a noção americana de privacidade, mas isso não exclui a existência de uma necessidade universal por privacidade. As sociedades primitivas possuem normas de privacidade, ainda que chamadas por outro nome. Outra importante ideia apontada pelo autor é que a privacidade não é essencial somente para o bem estar individual. Certo nível de privacidade também é necessário para a existência e o bom funcionamento de organizações sociais e para o governo.
Sob o ponto de vista jurídico, a formação do conceito de privacidade consiste de muitas coisas diferentes, mas relacionadas, fugindo de um conceito de característica única.
Daniel Solove (2008, p. 10) defende focar nos problemas da privacidade ao invés de buscar localizar um terreno comum conceitual. Segundo o autor, a sua compreensão permitirá a criação de leis e políticas para endereçar questões de privacidade. Ele cria quatro grupos taxonômicos: information collection, information processing, information dissemination, invasion. Estes grupos dividem-se em subgrupos.
A privacidade é um valor profundamente importante ao redor do mundo. As Constituições de diversos países possuem esse valor esculpido como direito fundamental. A Constituição brasileira faz menção à privacidade tornando inviolável a vida privada conforme contido em seu art. 5º, X:
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
O Código Civil de 2002 trata da vida privada como um direito da personalidade, conforme o art. 21:
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
A Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), por sua vez, faz direta menção à privacidade conforme disposto em seu art. 2º, I:
Art. 2º: A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:
I - o respeito à privacidade;
Para Westin (1967, p. 31) há quatro estados básicos de privacidade individual: solidão, intimidade, anonimato e reserva. O primeiro estado da privacidade é a solidão, onde o indivíduo é separado do grupo e se encontra livre da observação ou interação com outras pessoas. Este é “o mais completo estado de privacidade que indivíduos podem atingir”.
O segundo estado da privacidade é a intimidade. Nele a pessoa tem a opção de escolher com quem quer se relacionar de maneira reservada, íntima. O terceiro estado é o anonimato. Neste estado, o indivíduo se expressa publicamente (através de atos ou outra manifestação), porém, sua identidade permanece oculta. O quarto, sendo o mais sutil e último estado da privacidade é a reserva: “esta é uma barreira psicológica contra uma invasão indesejada” (WESTIN, 1967, 32).
Solove (2008, p. 4) cita vários pesquisadores que se apresentam preocupados com as violações que a privacidade está submetida constantemente. Cita o próprio professor Alan Westin em sua obra Privacy and Freedom (1967) ao expor a “profunda preocupação com a preservação da privacidade sob novas pressões vindas de tecnologias de vigilância”. Percebe-se que a preocupação não cessou ao longo dos anos permanecendo atual, principalmente no que se refere à vigilância imposta pelas novas tecnologias.
Apesar de muitas pessoas preocupadas com a privacidade e os mecanismos de vigilância impostos sobre ela, Solove afirma que muitos, ao contrário do que dizem, demonstram, através de suas ações, que “eles realmente não querem privacidade nenhuma”, se referindo aos “detalhes íntimos que as pessoas rotineiramente revelam sobre si na internet”.
Analisar a violação da privacidade nos dias atuais passa, necessariamente, por analisar o fenômeno da “autoviolação”, ou “self-invasion”. Este fenômeno está associado ao indivíduo não-reservado que ultrapassa seus próprios limites de privacidade. Simmel, 1950, apud Westin (1967, p. 52), afirma que essa falha em promover minimamente sua privacidade faz com que o “indivíduo revele tanto sobre si àqueles que estão a sua volta que seus relacionamentos deterioram e ele cessa de ter uma vida privada”, ressaltando que a privacidade é um valor com diferentes representações entre “nação para nação em termos do impacto de cultura nas relações interpessoais” (WESTIN, 1967, p. 29). Gerstein, (1978, p. 76), por sua vez, declara que “relacionamentos íntimos simplesmente podem não existir se não continuarmos a insistir na privacidade para eles”.
De fato, vários pesquisadores constataram que a palavra privacidade tem sido utilizada de várias maneiras, muitas delas significando tantas coisas para diferentes pessoas que ela “perdeu qualquer conotação legal precisa que poderia ter tido um dia” (SONOVE, 2008, p. 7). Tal imprecisão cria empecilhos para criação de políticas e leis ou para resolução de casos concretos pela corte judicial.
A privacidade e suas conexões com outros valores
Os pensadores tradicionais tentaram encontrar elementos essenciais comuns ao que chamamos de vida privada para formular uma concepção baseada nesses elementos. As concepções dividem-se em seis grupos (SOLOVE, 1967, p. 12):
(1) Direito de estar só (Right to be let alone).
(2) Habilidade de proteger-se de acesso indesejado de outros, o chamado acesso limitado a própria pessoa (Limited access to self).
(3) Confidencialidade (Secrecy) – abster-se de compartilhar determinados assuntos com outros.
(4) Controle sobre informações pessoais (Control over personal information).
(5) Direito de personalidade (Personhood) - Promoção da individualidade e dignidade.
(6) Intimidade (Intimacy) - Restrição de acesso a informações sobre relacionamentos ou aspectos íntimos.
O direito a privacidade (right to privacy) é uma criação atribuída, de maneira geral, à Samuel Warren e Louis Brandeis, dois jovens advogados de Boston no ano de 1890. Definiram privacidade como o “direito de estar só” (right to be let alone), uma frase proferida pelo então juiz Thomas Cooley em 1880.
Segundo Solove, o segundo conceito analisado, o “acesso limitado a própria pessoa” (limited access to self), é intimamente relacionado ao conceito anterior do “direito de estar só”, talvez representando uma formulação mais sofisticada do mesmo onde em nada se equivale a “solidão”, sendo esta uma forma de isolamento de outros indivíduos.
O entendimento de privacidade como segredo (secrecy) é o terceiro conceito analisado por Solove e, de acordo com essa visão, a “privacidade é violada pela divulgação de uma informação previamente oculta”.
O controle sobre a informação pessoal (control over personal information) como teoria da privacidade onde a autodeterminação sobre os vários aspectos da comunicação da informação pessoal a outros (quando, como, em que extensão, etc.) é uma das teorias predominantes.
A proteção da personalidade (personhood) é outra teoria da personalidade construída sobre uma noção também de Warren e Brandeis sobre “personalidade inviolada” e, diferentemente das teorias anteriores, esta é “construída sobre um fim normativo de privacidade, a proteção da integridade da personalidade” (SOLOVE, 2008).
A intimidade (intimacy) possui conceituações diversas. Fried, 1970, apud Solove, 2008, afirma que “intimidade é o compartilhamento de informações sobre as ações, crenças ou emoções de alguém que este não compartilha com todos tendo o direito de não compartilhar com ninguém (...)”.
Solove entende que nenhum destes conceitos apresentados são, por si só, suficientes para conceituar a privacidade, seja porque são vagas, seja porque, segundo o autor, encaixam-se como um subgrupo da privacidade.
Um ofensor natural à privacidade é a necessidade de vigilância. Westin descreve três tipos principais de vigilância moderna: observação, extração e reprodutibilidade de comunicação (WESTIN, 1967, p. 58).
BIBLIOGRAFIA BASE
SOLOVE, Daniel. Understanding Privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008.
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy, Harvard Law Review, Boston, Vol. 4, N⁰ 5, pp. 193-220, 1890.
WESTIN, Alan F. Privacy and Freedom. New York: Atheneum, 1967.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
LYNSKEY, Orla. The Foundations of EU Data Protection Law. Oxford: Oxford University Press, 2015.
GERSTEIN, Robert S. Intimacy and Privacy, Ethics, The University of Chicago Press, vol. 89, No. 1, pp. 76-91, 1978.
SOLOVE, Daniel J. The Digital Person: Technology and Privacy in the Information Age. New York: New York University Press, 2004.
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy, Harvard Law Review, Vol. 4, No. 5., pp. 193-220, 1890.