Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais DTEC-UFMG
Data: 01/06/2021
Relatores: Bruno Braga Araújo Campos, Laila Machado de Almeida, Raquel Carvalho Smythe
Introdução
O termo disrupção ganhou projeção na década de 90 do século XX, sobretudo a partir do trabalho de Clayton Christensen. Christensen classificou como disruptivas as inovações que, por serem amplamente aceitas, suplantam modelos clássicos até então adotados e provocam a derrocada dos players tradicionais que não aderiram à inovação ou que demoraram a fazê-lo. A disrupção pode ser percebida na substituição dos players tradicionais por plataformas digitais. Está presente também na chamada plataformização, por meio da qual os players do mercado passam a operar intermediados pelas plataformas digitais.
Nesse novo modelo de organização industrial, o uso de sofisticados algoritmos para coordenar de maneira eficiente a oferta e a demanda, otimizar o uso dos ativos, reduzindo sua ociosidade, melhorar a comunicação, prover informações mais precisas, dentre outros fatores, promove a significativa redução dos custos de transação e agrega eficiência ao processo comercial, que é ainda potencializada pelos efeitos de rede que as plataformas produzem.
Em contrapartida, os players tradicionais podem perder influência no mercado e renda porque a plataforma passa a ser o ator que determinará como serão distribuídos os benefícios decorrentes do ganho de eficiência, apropriando-se de parte dos lucros. Em algumas circunstâncias, há a comoditização dos serviços, com a plataforma podendo definir até mesmo o preço, situação que intensifica a pressão competitiva. Ademais, a intermediação não está livre de conflitos de interesse; acusações nesse sentido proliferam.
As plataformas, por muitas vezes atuarem num vácuo jurídico, não raro desafiam a aplicação da legislação existente e, dado seu caráter pervasivo, podem interferir até mesmo nas políticas públicas. Essas perspectivas evocam o debate sobre a regulação das novas tecnologias.
TEMA 1: O QUE É REGULAÇÃO
De acordo com Martin Lodge e Christel Koop, regulação é um conceito abstrato que tem um vasto escopo e, nesse sentido, não se prende a uma definição limitada. Não obstante, segundo esses teóricos, há entendimento comum, transdisciplinar, de que regulação consistiria em intervenções no comportamento ou na atividade de atores sociais, pessoas físicas ou jurídicas. As variações nas concepções de regulação mapeadas na pesquisa dos referidos autores seriam atinentes à intencionalidade da interferência (intencional ou não-intencional), à sua natureza direta ou indireta, conforme a estratégia adotada, à natureza do agente regulador, (ora é admitida como regulação apenas a intervenção estatal, ora a compreensão se estende também a agentes não-estatais). Os autores relatam, ainda, divergências na concepção de regulação quanto ao objeto, que ora seriam exclusivamente atividades econômicas, ora abarcariam também atividades de outras naturezas, públicas e privadas. Há, ainda, a questão da necessidade ou não de separação entre agente regulador e ente regulado, premissa determinante, em alguns contextos, para a aceitação da autorregulação.
Embora regulação comumente remeta à ideia de uma função estatal que tenha por objetivo a conformação da atividade econômica, com vistas a modular resultados, no contexto das tecnologias disruptivas ganha projeção o conceito de regulação por arquitetura de sistemas, introduzido por Joel R. Reindeberg e desenvolvido por Lawrence Lessig. Lessig coloca os códigos de sistemas como uma modalidade de regulação, ao lado das leis, das normas sociais e do mercado, reconhecendo a interação dinâmica entre essas modalidades e o alto grau de eficácia da arquitetura dos sistemas para engajar comportamentos.
TEMA 2: O PAPEL DA REGULAÇÃO NO FENÔMENO DA DISRUPÇÃO
O Professor de Direito da Universidade da Califórnia, Anupam Chander, em seu texto How Law Made Silicon Valley, no contexto da análise dos elementos que contribuíram para o sucesso das empresas de tecnologia do Vale do Silício, aponta para o papel determinante da legislação na trajetória de ascensão daquelas empresas rumo à liderança global no seu segmento. Segundo o autor, o compromisso com a garantia da liberdade de expressão e a adoção de uma legislação não tão rígida de proteção da propriedade intelectual foi crucial para ajudar as start-ups a superarem as dificuldades que permeiam os negócios em seu estágio inicial, reduzindo o peso regulatório sobre elas e permitindo seu crescimento e consolidação. A abstenção quanto à regulação dos riscos que as novas tecnologias poderiam trazer também é um elemento trazido por Chander como encorajador das empresas do Vale do Silício. Nesse sentido, e considerando a função legislativa e regulatória que incumbe aos Estados, Chander defende a ideia de que “the government has the power to enable, or disable, a new industry. The power to make in this case implies the power to break.”
Nessa perspectiva, é de se reconhecer que não apenas o movimento de digitalização dos negócios, mas também a padronização da internet, com o estabelecimento de obrigações de neutralidade de rede e interoperabilidade e a fragmentação horizontal e vertical dos mercados, para estímulo à concorrência e promoção da eficiência econômica, pavimentaram o terreno para o surgimento e a proliferação das plataformas digitais. Agora, a análise de casos emblemáticos envolvendo as plataformas digitais ajuda a compreender em que medida o arcabouço normativo vigente alcança as atividades dessas empresas e sinaliza algumas das mudanças regulatórias que serão necessárias para balancear seu poder de mercado, estabelecer a alocação dos riscos e dos custos sociais de sua utilização, mitigar a assimetria informacional quanto ao funcionamento dos algoritmos, dentre outras coisas.
Na ADPF 449/2019, o STF entendeu ser inconstitucional o banimento da Uber, reconhecendo, contudo, o cabimento da regulação da plataforma, que, dentre outras relevantes discussões, protagoniza aquela sobre a responsabilidade trabalhista em face dos motoristas. A ADPF 574/2019 envolvendo a Buser, embora tenha sido extinta sem resolução do mérito, coloca em perspectiva o debate sobre a revisão do conceito de publicatio, sobre a sustentabilidade de alguns serviços públicos no contexto de assimetria regulatória e sobre o potencial dos algoritmos de interferir nas políticas públicas. Nos casos envolvendo a Apple, nos Estados Unidos, e o Ifood, no Brasil, fica clara a ascendência das plataformas sobre o mercado que coordenam, a ponto de decidirem unilateralmente sobre a divisão dos benefícios gerados pelo ganho de eficiência proporcionado pela redução dos custos de transação e, ainda, de deterem poder de mercado suficiente para adotar práticas que possam dificultar a entrada de outras plataformas no segmento em que atuam.
A crescente aplicação de recursos de inteligência artificial para a automatização de funções tem o potencial de reduzir ainda mais os custos de transação, resultando em plataformas cada vez mais eficientes e, portanto, competitivas. Disputas envolvendo o emprego desses recursos, como no caso do Apple Card, revelam a necessidade de alinhamento dos algoritmos com o princípio da igualdade, da livre concorrência e com outras premissas insculpidas em normas fundamentais. É necessário evitar que os algoritmos concorram para a criação ou a perpetuação de vieses discriminatórios indesejados quando da tomada de decisões de forma automatizada.
As tecnologias disruptivas já se submetem a alguns parâmetros regulatórios colocados pelas normas e princípios existentes no ordenamento jurídico e por mecanismos de controle propostos num contexto de autorregulação. Tal circunstância não reduz o poder-dever do Estado de incrementar e aperfeiçoar a regulação vigente com vistas à proteção de bens jurídicos que venham a ser ameaçados. Essa atuação deve ser precedida de análise de impacto regulatório, baseada em métricas confiáveis obtidas por meio de pesquisas e uso de ferramentas como o sandbox regulatório, e, sempre que possível, com a participação da sociedade civil e demais interessados, em atuação colaborativa e abordagem sistêmica, de maneira a endereçar as questões regulatórias considerando as idiossincrasias e as complexidades que as permeiam.
Bibliografia Base
CHANDER, Anupam. How Law Made Silicon Valley. Emory Law Journal. Atlanta: Emory University School of Law. v. 63, n. 03, p. 639-694, 2014.
KOPP, Christel; LODGE, Martin. What is regulation? An interdisciplinary concept analysis. Regulation & Governance. Hoboken: Wiley. v. 11, n. 01, p. 01-43, Jul. 2015.
Bibliografia Complementar
BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e até onde regular as novas tecnologias? Entre inovação e preservação, os desafios trazidos pelas inovações disruptivas. In:
FREITAS, Rafael Véras de; RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno. (Coord.) Regulação e novas tecnologias. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
CHAVES, Dagoberto L. M. M. Direito das plataformas: as relações entre múltiplos agentes. In:
FREITAS, Rafael Véras de; RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno. (Coord.) Regulação e novas tecnologias. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
FINGER, Matthias. Algorithms as Public Policy: How to Regulate Them? Network Industries Quarterly, vol. 21, n. 4, December 2019.
FINGER, Matthias; MONTERO, Juan. The rise of the new network industries. Regulating digital platforms. New York: Routledge, 2021.
KOTAPATI, B; MUTUNGI, Simon; NEWHAM, Melissa; SCHROEDER, Jeff; SHAO, Shili; WANG, Melody. The Antitrust Case Against Apple. Digital Platform Theories of Harm. Thurman Arnold Project. Yale University. May 20, 2020. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3606073>. Acesso em: 07 jun. 2021.
MONTERO, Juan Jose. Digital Platforms vs. Large-Scale Firms: Regulating a New Model of Industrial Organisation. Network Industries Quarterly, vol. 21, n. 4, December 2019.
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