Grupo de Estudos em Direito e Tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais- DTEC-UFMG
Data: 23/03/2021
Por Alexandre Aguilar Santos, Gilberto Netto de Oliveira Júnior e Marcos Cezar Moutinho da Cruz
Direitos e Garantias Fundamentais de Inclusão Digital.
Os direitos fundamentais são protetivos, garantem o mínimo necessário para que um indivíduo exista de forma digna dentro de uma sociedade administrada pelo Poder Estatal. A existência dos direitos fundamentais está muito atrelada à criação dos Direitos Humanos como um todo, ou baseados no princípio da dignidade da pessoa humana.
Os artigos 5º ao 17 da Constituição Federal de 1988, estipulam quais são os direitos fundamentais e garantias que o indivíduo desfruta de forma contínua.
No entanto, não podem os direitos e garantias fundamentais serem tratados como sinônimos. Os direitos fundamentais são disposições declaratórias, o que significa que são prerrogativas reconhecidas pelo Estado como válidas. Já as garantias fundamentais, são instrumentos que existem com o objetivo de assegurar que o texto constitucional seja universalmente aplicado.
Questões relacionadas ao gênero, à classe, à etnia e raça, à crença religiosa e a demais questões são abordadas na Constituição com o objetivo de dar respaldo protetivo legal à possibilidade das pessoas serem tratadas como iguais, tendo em mente as suas diferenças entre si.
Em resumo, o direito fundamental é uma norma, com vantagens previstas no texto constitucional. As garantias fundamentais, por outro lado, são instrumentos que existem com o objetivo de assegurar que o texto constitucional seja universalmente aplicado dentro do território do Estado.
Nesse cenário, a inclusão ou exclusão digital vem sendo questionada como um direito fundamental. Todavia, a princípio, deveria ser entendida como garantia fundamental, para resguardo da vida ou vida digna, reduzindo as desigualdades pelo acesso, pelo conhecimento, da mesma forma a liberdade de expressão. Assim, a inclusão digital é meio e não fim em si mesma.
Ressalta-se que Constituição brasileira adota um sistema aberto de regras e princípios, permitindo que além daqueles Direitos fundamentais já expressamente positivados pela lei Carta Magna, outros Direitos e garantias fundamentais possam ser incluídos no rol de Direitos fundamentais, alguns até mesmo, por via interpretativa.
Inclusão Digital.
Trata-se de um conceito amplo, largo, fluido e indeterminado. Por conta disso, tentar desenvolver essa temática na área jurídica não é tarefa fácil, assim como tentar dar concretude a conceitos como a liberdade, igualdade e a moralidade.
A evolução da tecnologia da informação e comunicação (TIC) deu ensejo ao advento da desmaterialização dos conteúdos e da convergência dos instrumentos. No que tange à primeira, não se pode confundi-la com a mera virtualização (que é a capacidade humana de abstrair e apreender objetos enquanto símbolos e sinais), tendo em vista que se trata da não vinculação direta entre o suporte e o conteúdo.
Até o fim do século XX, todo material produzido se vinculava ao seu suporte, mas a partir da desmaterialização ou digitalização, conteúdos como texto, áudio e vídeo passaram a ser disponibilizados, também, como arquivos de dados para serem reproduzidos em qualquer sistema informático.
Já no que tange à convergência de instrumentos, trata-se da unificação de texto, áudio e vídeo em arquivos de dados, tornando irrelevante a vinculação a determinado aparelho.
Diversos são os termos criados na tentativa de querer explicar/conceituar os problemas relativos à inclusão digital, tais como: apartheid digital, digital divide, diferença digital, abismo digital. Portanto, o quadro que se apresenta é de uma desigualdade sobre o acesso às tecnologias, seja em relação aos diferentes países do mundo e seus diferentes graus de desenvolvimento, seja no que diz respeito às diversas classes sociais e econômicas.
O termo “inclusão digital” adveio do conceito de “inclusão social”, a partir de uma leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e deriva de um ambiente de fortes lutas, notadamente para o reconhecimento de direitos como os das mulheres, negros, índios, pessoas com deficiência, dentre outros.
Nesse sentido, a expressão “inclusão digital” tem como eixo a busca pela superação de barreiras e obstáculos que são instituídos nas relações sociais e terminam por gerar exclusões, in casu, no que se refere às diferentes tecnologias diuturnamente produzidas, modificadas e aperfeiçoadas.
Com o fenômeno do neoliberalismo, o Estado (principalmente dos países em desenvolvimento) passa a ser mero “terceirizador”, entregando suas competências funcionais para a iniciativa privada, e restringindo-se a permanecer como arrecadador de impostos.
A burocracia e a falta de infraestrutura acabam por encarecer os serviços tecnológicos nos países em desenvolvimento, os quais também, via de regra, não possuem know how para o fornecimento autônomo de tais serviços. Isso faz com que esses Estados sejam obrigados a delegar tais funções a empresas e organizações estrangeiras, gerando ainda mais descapitalização para esses países.
Interessante exemplo apresentado por Victor Hugo Pereira Gonçalves dá conta de que na cidade de Hortolândia/Sp, em estudo realizado pela Faculdade Getúlio Vargas, ficou demonstrado que o índice de inclusão digital no município é de 9,71%, o que levou a cidade ao 396º lugar dentre todas as cidades brasileiras.
Ocorre que nesta mesma cidade está instalado um gigantesco complexo da empresa IBM, com suporte informático e de telecomunicações que fornece serviços online para todo o mundo de forma ininterrupta.
Portanto, verifica-se que o conceito de inclusão digital e as tentativas de solucionar o problema, ou ao menos abrandá-lo, envolve questões econômicas, sociais e até mesmo de política internacional, do que nuances da tecnologia em si.
Apesar da divergência existente entre a essencialidade do acesso à internet, a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em relatório de 2008, considerou que o acesso à internet de banda larga é tão importante quanto o acesso à água potável e à eletricidade. Victor Hugo Pereira Gonçalves também entende que a inclusão digital pode ser vista como um direito-meio ou direito-garantia dos direitos humanos fundamentais, um direito acessório a outro direito do qual depende intrinsecamente, estando profundamente ligado à liberdade e igualdade.
Todavia, essas ferramentas tecnológicas também são usadas pelos entes estatais para dominação. Para Bobbio são poderes arcana imperii, aqueles que estão longe dos holofotes públicos, e estas decisões acabam por inverter as premissas do Estado Democrático, pois ao invés dos cidadãos controlarem o poder do Estado, passam a ser controlados por ele.
Exclusão Digital.
Para além do aparente significado adversativo, a inclusão e a exclusão digital devem ser entendidas como faces da mesma moeda, eis que, como já mencionado acima, são direitos-meio ou direitos-garantia.
A exclusão, por sua vez, pode ser positiva ou negativa. Em seu aspecto positivo, a exclusão percorre os mesmos caminhos que a inclusão digital, devendo ser entendida quando conjugada com os direitos à privacidade, intimidade, vida privada, e também tendo como caráter preponderante, o consentimento do usuário, devendo o sujeito decidir se quer ser incluído ou não.
Já em relação ao aspecto negativo, este deve ser entendido pela falta das condições materiais e estruturais para que sejam atribuídas aos cidadãos as liberdades e possibilidades de escolhas. Dessa forma, quando a exclusão é mecanismo de desigualdade, ela já não pode mais ser tratada como positiva, devendo ser buscada a isonomia.
Portanto, em relação aos casos de violações à dignidade da pessoa humana nos seus aspectos da intimidade e privacidade, a exclusão se transformará em ferramenta de luta e combate ao monitoramento, e controle do comportamento das pessoas, e também de enfrentamento a acumulações indevidas de informações pessoais de dados comuns ou sensíveis.
Nesse sentido, é necessário que seja concedido ao cidadão o direito de se excluir de redes de informação e comunicação que apenas visam a recolher indevidamente seus dados.
A vigilância virtual está crescendo de forma assustadora, e é realizada por
Estados e empresas com o fito de lucro, persecução criminal, acesso a informações cobertas por sigilo bancário, padrões de consumo, dentre outros.
North Carolina v. Parkingham
Sobre o direito à inclusão digital, na Carolina do Norte (EUA) Lester Packingham de 21 anos foi condenado por crime de natureza sexual por ter se relacionado com uma adolescente. Após cumprir certo tempo da pena, foi concedida liberdade provisória de vinte quatro meses ao condenado. Durante esse período, Lester postou em seu Facebook sobre um problema ocorrido no trânsito. No entanto, a Lei da Carolina do Norte proíbe pessoas que cometeram crimes de natureza sexual a se cadastrarem e efetivamente usar redes sociais onde menores de idade possam estar.
A Corte Estadual reconheceu a violação feita por Parckingham, sendo a causa levada para o Court of Appeals onde restou reconhecida a inconstitucionalidade da Lei que o proibia condenados por crimes de violência sexual de se vincularem a uma rede social. Mais tarde, a North Carolina Supreme Court desfez o entendimento do Tribunal de Recurso. Packingham, então, através do writ of certiorari, solicita que a causa seja julgada pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Em decisão unânime, ficou reconhecido o direito constitucional de liberdade de expressão, conferido pela Primeira Emenda, em detrimento da Lei Estadual. Argumentou-se que hoje o ciberespaço confere ao indivíduo a possibilidade de realizar sua liberdade, uma vez que a internet é lugar público onde se acumulam as trocas de pensamento. Saber sobre eventos, procurar emprego, falar e ouvir e explorar os vastos campos do conhecimento são alguns dos direitos que não podem ser negados aos indivíduos, de acordo com a Corte. Existem outros mecanismos para evitar que crianças e adolescentes sejam vítimas de crime sexual sem que haja ofensa à constituição.
Mesmo a decisão sendo unânime, através do instituto do concurring, dois dos oito magistrados registraram seus votos por argumentação divergente dos demais. Para o Juiz Samuel Anthony Alito Jr e o Juiz Clarence Thomas os direitos de Parkingham foram violados pela Lei Estadual, mas a fundamentação da Suprema Corte no caso não pode adotar a natureza da internet como domínio público devido às diferenças desses dois espaços.
Trump’s social media bans are raising new questions on tech regulation
Há algum tempo as pessoas se perguntam sobre os poderes que uma Big Tech pode exercer numa democracia. Por mera discricionariedade um CEO pode “desligar a voz” de alguém numa rede social sem freios e contrapesos. Isso representa um dos poderes das plataformas digitais e a fragilidade de como a nossa sociedade está organizada no espaço digital. Hoje, muitos representantes políticos dão um “click” e num piscar de olhos, expressam suas opiniões com o público que conversa ou não com suas ideologias.
O ex-presidente Donald Trump, não foge a essa regra. Trump tem feito postagens em suas redes sociais que beiram, ou ultrapassam, os limites do considerado “adequado” por um chefe de Estado. Para piorar, ao longo dos anos as plataformas fizeram vista grossa sobre as diversas polêmicas oriundas de suas redes sociais.
No final de 2020, o então presidente, utilizando suas redes, incitou o público sobre a suposta fraude nas eleições americanas. No dia 6 de janeiro de 2021, simpatizantes do ex-presidente invadiram o Congresso Americano o que fez com que a grande maioria das pessoas que acompanhavam o caso refletissem sobre os limites da liberdade de expressão e o banimento de Trump das redes sociais. O Facebook e o Twitter, então, suspenderam as contas de Trump por tempo indeterminado por representarem um perigo à democracia estadunidense.
Muito se discutiu sobre quando e se é legal esse tipo de ação das plataformas. Acontece que não existem muitas normativas sobre a situação, o que gera insegurança jurídica sobre a possibilidade de censura discricionária da própria plataforma para com seus usuários. Ao nosso ver, a decisão foi acertada uma vez que Trump não é um cidadão comum e até aquele momento representava os Estados Unidos. Utilizou-se de sua liberdade de expressão para balançar as instituições e foi repreendido. O ex-presidente não será preso e nem será impedido de manifestar suas opiniões em outros lugares. Muito longe disso, Trump é plenamente incluído digitalmente ao contrário de milhões de pessoas que, em pleno 2021, não estão incluídas nesse espaço.
BIBLIOGRAFIA
AMARO, Silvia. Trump’s social media bans are raising new questions on tech regulation. CNBC. 11 de jan. 2021 Disponível em: https://www.cnbc.com/2021/01/11/facebook-twitter-trump-ban-raises-questions-in-uk-and-europe.html. Acesso em 19 de mar 2021.
BOBBIO, Norberto.Estado, Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Imprenta: Coimbra, Almedina, 1998.V
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Packingham v. North Carolina. 19 de junho de 2017.
GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Direito Fundamental à Exclusão Digital. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (Coord.). Direito & Internet III: Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965/2014. São Paulo: Quartier Latin, 2015. t. I
__________. Inclusão digital como direito fundamental. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2011.
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